8.1.08

O Laço Vermelho

Corri engraçado até o sebo pra fugir da garoa.

Sebos são maravilhosos. Fui deslizando os olhos pelas torrentes de livros cheios de alma. Lidos e repassados. Livros lidos têm personalidade, foram úteis, fizeram alguém divagar, sentir. Livros de sebo têm alma.

- Procura alguma coisa, cara?
- Não não, valeu. – respondi sem olhar.

Puxei um Hesse. Sidharta. Dei uma folheada cheia de lembranças. Sartre. Wilde. Depois de vários, puxei Poe. Um compilado velho de contos, capa dura daquelas de biblioteca, lisa e azul, com o título em dourado na lateral. Páginas manchadas, cheirando tempo. Abri o livro no meio, casualmente, o que fez a brochura gemer, como que reclamando de um longo sono. Espantei-me ao me deparar com um enigma na página, escrito com o sangue de algum leitor pirado:

O laço vermelho pertence ao dono do sebo

Olhei em volta pra me certificar de que ninguém compartilhava de minha descoberta. Depois voltei à charada doida, escrita em desespero. Olhei novamente ao redor e quando ia voltar ao livro, meu olho deslizante capturou o inesperado: um lenço vermelho jazia embolado no meio de uma fileira de livros, na mesma estante em que eu havia pegado o volume em mãos.

Involuntário, meu braço avançou até o objeto. Com o olhar desconfiado, peguei o laço de seda e o observei. Era um laço liso, novo, em bom estado. Observei o dono do sebo por uns instantes, discretamente, tentando decidir o fim daquilo. Conclui rápido, sem pensar muito, que se o laço vermelho pertence ao dono do sebo, caberia a mim leva-lo ao seu dono. Nada mais simples. Fui até o balcão.

- Boa escolha. Custa cinco conto. – disse o homem com um sorriso amigável.

Como assim “boa escolha”? Permaneci encarando-o sem entender, e então olhei para o objeto em minhas mãos. Entre meus dedos jazia um volume surrado de qualquer peça shakespeariana. Noite de Reis, pra ser mais preciso, numa capa vermelha.

Não entendi nada.

- Ué cara, eu tava com seu laço aqui na minha mão. Deve ter caído. – me desculpei meio confuso. Rastreei pelo chão, percorrendo com os olhos o caminho até a estante em que eu havia devolvido o volume de Poe que segurava há um minuto.
- Que história é essa de laço? Você não é o primeiro que me vem com essa na semana.

Fiquei assustado. Era piada, uma pegadinha. Não, não, tinha a mensagem no livro do Poe.

- Vem cá ver isso – chamei-o até a estante e procurei o livro de contos do Poe. O livro havia sumido. – Cara, tava bem aqui, um livro de contos do Allan Poe. Tava escrito em sangue.
- Ah meu deus, essa história fica cada vez mais divertida – gozou o dono do sebo, cético. – Ontem uma moça disse que tava escrito com batom, num Huxley.
- Mas...
- E outra, cara, o último volume de Poe que eu tinha aqui foi comprado semana passada - disse ele, explicativo. – Só to contando isso porque to começando a levar isso a sério. Pó, cê deve ser o décimo cara a vir com esse diabo de laço vermelho.

Começamos a voltar para o balcão. Meus olhos se perdiam vagando pelo chão, sem entender nada. Eu havia sentido a fita vermelha, a seda entre os dedos.

- E tem outra. – disse ele com as sobrancelhas arqueadas. – Vocês sempre trazem Noite de Reis, do Shakespeare, depois da história doida do laço.
- Ué, e como ainda tá aqui?
- Nenhum deles comprou. Saem todos meio pensativos, atordoados. Estranho pra cacete.
- Caramba...
- Pois é. – coçando a nuca.

Por um breve momento, desconfiei de novo.

- Isso não é brincadeira tua não, né cara? – intimei inquisidor, meio agressivo até.
- Pô cara, claro que não, não mesmo.

A expressão era verossímil, não tinha porque duvidar do coitado.

A garoa tinha dado uma pausa.

- Vai levar a peça do shakespeare?
- Pode ser.

Tava uma pechincha mesmo. E em bom estado, até. Mas sei lá, não vou mentir pra mim mesmo: comprei aquilo como se tivesse quebrando um feitiço naquele sebo. Devo ter ficado constrangido com o pobre do vendedor e resolvi comprar a tal da peça.

Que doideira. Não é de se acontecer todo dia.

Quando saí do estabelecimento, começou a garoar fraquinho de novo. Pela vitrine, o vendedor organizava uma estante qualquer. Distraído, esbarrei numa vendedora de camelô.

Ela vendia laços de seda.

Laços vermelhos.

Um comentário:

AEmarcondes disse...

Cara... Essa é a sua cara. De caraq eu já saquei. E olha, como diria o Zequinha: "Fiquei de cara!"
UEhueaehiaeuhiaeuh
Vlw os coments.