5.3.08

Antes do Princípio

Alende era um cara comum. Não no sentido ruim da palavra, ordinário. Mas também não era extravagante. Por isso o comum. O bom comum.

Pra ele, as mulheres nunca amadureciam. Claro, havia uma curtíssima minoria que aprendia com os erros, pensava sobre a vida, se esforçava pra perder hábitos ruins, e por isso, tornava-se de certa forma, madura. Pra Alende, o amadurecimento tinha a ver com o controle emocional. Era de certa forma a consciência sobre si mesmo, como indivíduo e como pessoa social.

Ele tinha vinte e poucos anos e era inteligente. Não pensava em se casar tão cedo, e por muitas vezes cogitara jamais se casar. Viver uma vida só dele, sem dividir com ninguém. Sem gastar seus pensamentos, suas idéias, sua energia com nenhuma mulher. Além dos relacionamentos que tivera, Alende conhecera poucas mulheres realmente interessantes e, coincidência, todas tinham idade por volta dos trinta. Se descobriu um amante das balzaquianas, mesmo sabendo que isso provavelmente não duraria.

Um dia estava saindo da editora em que trabalhava quando passou por um ateliê na avenida. O estabelecimento chamou sua atenção por ser grande e estar quase vazio. O que via ali era um imenso painel negro no chão, sendo pintado por uma moça de cabelos escuros. Alende não a via direito, mas percebeu que era bonita. No mais, havia uma escada suja de tinta, uns baldes metálicos, panos e toda sorte de pincéis. Resolveu, por nada, entrar. Depois de cumprimentar a pintora da obra de arte – via-se que era uma pintura artística – seguiu:

- O painel tá muito bacana.
- Obrigada. – e levantou, feminina e bela. Ele estava certo.
- É pra uma exposição?
- É sim, uma exposição lá no Centro Cultural. Coisa pequena.
- Pequena? Olha o tamanho disso. – brincou. Ela riu. Ele continuou. – Bacana teu senso estético. Me lembra Magritte de certa maneira, mesmo que as formas estejam mais pra Miró.
- Cê pinta também? – perguntou a artista.
- Ah, não, não. Eu escrevo algumas besteiras.
- É redator de revista masculina? – perguntou em tom sério.
- Não! Não, é que...
- To brincando com você. – cortou ela tirando sarro. – Eu te entendi.

Alende riu também. No painel escuro, via-se uma figura humana andrógina, bela e pueril, de pele rosada, sendo parida por uma mãe de pele negra.

- A obra é sobre sociedade, né? Etnias, brasilidade, Macunaíma e tudo o mais, né? – perguntou Alende.
- Bom, se você vê isso na obra, é isso que ela é.
- Hahaha, sem enigmas, do que se trata?
- Ela trata exatamente do que você enxerga. – persistiu enigmática.
- Ah, sei. – disse ele com sorriso de boca fechada. - Um teórico modernista disse que as obras de arte, principalmente desde as estéticas vanguardistas, tomavam significado, ou ao menos estabeleciam uma linha de pensamento sugestiva, a partir do nome da obra.
- Razão pela qual muita obra de artista modernista consta nos museus como “sem nome”. – devolveu.

Ele teve que rir. Ela era rápida.

- Tá, tá bom. A tua tem nome?
- Tem. Chama-se Antes do Princípio.
- Hum... Legal.

Alende permaneceu por alguns segundos observando a obra, até que ela resolveu falar mais sobre o que pintara.

- É sobre a criação do universo. A criança é uma representação de Deus, sendo parida pela mãe-universo.

Ele estava sem chão. Era mais lindo que no início agora, mas não era exatamente por isso que ele estava abismado.

- Quer dizer que, não obstante Deus não ser uma figura puramente masculina, o universo foi criado pela figura feminina nessa sua leitura?
- Se isso é o que você vê. – Disse ela provocativa.
- Mas isso é primitivo. Mitologicamente é um retrocesso.

O que Alende queria mesmo era dizer que aquilo era imaturo. Deveria ter percebido antes. Ela era bonita e jovem. Era esperta e rápida também. Comunicativa. Mas tava ali, na obra dela, gritante, a imaturidade. Muita imaturidade.

- Não cara. É arte a partir de uma mulher.

Aquilo o deixou atordoado. Quase não conseguia admitir a profundidade da resposta dela. A arte, na medida em que é expressão, sempre foi, ao longo da história, predominantemente masculina, é verdade. E isso não só na pintura, Alende sabia disso. Tentava se justificar em busca de um estado mais confortável ao pensar que a arte e a representação masculina da divindade não têm a ver com o fato de que quase a totalidade das obras artísticas que se conhece hoje fora criada por homens. Pra ele, a arte, mesmo que expressa pela mão masculina, era universal, assexuada.

Mas não. Aquela resposta mexera com ele. Aquela resposta veio que nem uma bala na cabeça de Alende. Aquilo ultrapassou o sentido estético, mítico e histórico da conversa. Três semanas depois ele ainda tinha pesadelos à noite. Afirmou sentir dores estranhas na testa e no tórax. Estava atormentado, assombrado pela artista de cabelos negros. Ela passara a ser figura arquetípica no inconsciente onírico das noites de Alende. Era um enigma, uma entidade. E ele só pensava numa coisa agora: quem era realmente imaturo?

Naquele mesmo dia, depois da resposta dela, ele esboçou qualquer sorriso vago. Trocaram algumas palavras e uns minutos depois ele se despediu.

- Você é quadro modernista daqueles “sem nome” também? – Brincou.
- Meu nome é Cecília – disse ela em riso simpático, graciosa.

Mas o nome não ia ajudar a entender.

3 comentários:

mari lou disse...

bem interessante a qestão do diálogo "gênero/objeto d arte" trabalhada no conto, o q vc fez d maneira bem didática, tipo, professor falando dos seus conceitos através d uma "ilustração". gostei da ilustração.

"a profundidade da resposta dela" o surpreendeu pq inseriu no objeto a sombra, matéria d q todo objeto d arte se nutre. mtas as vezes ocorre d qerer-se dissecar as obras artísticas ateh seu último veio d significado, só q toda obra se faz a partir das sombras, do q ñ se compreende. e estas sombras são preservadas na concepção do objeto.

às vezes a gente tenta "esvaziar' o objeto d arte, e acho q foi justamente isso q fez Alende se espantar com sua pintora. ela reintroduziu as "sombras", como parte integrante do fazer e da leitura do obejto, o q o deixou meio confuso, sem saber, "Mas o nome não ia ajudar a entender". nem nada ajudaria. existe uma brecha em cada objeto artístico q realmente nem é pra ser entendida, é outra parte do corpo q será usada para atribuição d significado. os sentidos, talvez, sentimentos, emoções...


enfim, leituras!


adorei a reflexão q me causou o conto, senhor victor.

um bjo,

té!

ahh, add o "dois conto" nos meus links, vissi?

mais bjo!

aron disse...

Você sabe que não gosto de conversas do tipo que os dois tiveram. Talvez por que mostra a infinita e sem esperança imaturidade de todos frente a tal assunto... Não sei se é a imaturidade em si, por que ela é cheia de graça, sim, talvez, um pedantismo de todos em querer dar uma idéia de maturidade... algo falso.
Conversas assim sempre me vão doer o anus, a não ser que se joguem as máscaras foras e assumimos a nossa imaturidade e conversemos como Crianças.
Adorei o conto meu nego. Só hoje que parei pra ler. Adorei.
E o final, " - Você é quadro modernista daqueles “sem nome” também? – Brincou.
- Meu nome é Cecília – disse ela em riso simpático, graciosa. "
Lindo e maravilhoso final :D
Parabéns meu nego... amei.

Viu como é bom deixar essa porra online!!!

Henrique Maeda Smith disse...

tenho que voltar a este um outro instante.