22.3.09

Yarbabov

Yarbabov foi um músico famoso em seus dias. Talentoso e virtuoso. Boa gente, amigável e cordial... mas acima de tudo, era músico. Se existe uma palavra que o podia definir e que ele estivesse de acordo, assim como seus mais íntimos amigos, era essa: músico.

As pessoas da época - e as de hoje - se perguntam porque Yarbabov parou de compor, tocar e cantar. Sim. Yarbabov um dia deixou de respirar música. Seu coração deixou de dançar ao som de sua própria música. Seus ouvidos ensurdeceram e sua voz emudeceu. A música... ah, a música!.. desvaneceu.

Yarbabov sentiu o final da música e dançou-a até o fim: se apaixonou. Amou tanto Cristovna que a música, seu Eu interior, ficou com ciúmes e o deixou...
Seu virtuosismo, dedicação e obsessão fizeram-no esquecer de si mesmo.

Foi necessário, dizem uns. Argumentam que Yarbabov ao mergulhar completamente no amor sacrificando a si mesmo, renasceria o maior genio musical. Não estavam errados, porém Yarbabov nunca renasceu. Yarbabov se perdeu. E seu último ato, perdido nesse labirinto, foi deixar um fio de Ariadne para o próximo que ousar: "Não mergulhes sozinho no vazio, traga consigo a si mesmo." O vazio, diz Yarbabov, era inicialmente o Amor que ele mergulhou. "Não há mergulho no Amor, você já está submerso Nele... Aproveite e cante e dance... Ame."

Yarbabov deixou essas últimas palavras para o próximo. Nós todos. Você. Eu. A música nunca o abandonou. Mas uma canção certamente chegou ao seu fim, assim como o desvanecer de uma nota para dar vida à próxima... formando a música mais linda de todas.

22.10.08

O Lapso do Mômaro

Todas as sinaleiras pararam para o maior espetáculo de todos os tempos. O artista, tão talhado, reluzia no centro dos holofotes. Navios voadores injetavam as luzes e, dos automóveis e janelas poluídas, a cidade espectava como platéia.

Era música? Poesia? Agradeceu sem ter idéia do que faria. Ah, tinha aquele ar de circo, isso tinha. Só pra reparar, olhou para os próprios pés e viu dois sapatões vermelhos de palhaço. Sim, uma pista. Tinha um lance de semáforos, flamingos, grandes cortinas, mendigos que se diziam demônios-azuis. Era isso? Uma faísca lhe passou latejando: estava curvado há mais de dez muitos, agradecendo a presença da platéia; mas assim que ficasse ereto teria de apresentar seu espetáculo.

Em sua casa apareceram três ratos há duas noites. O terceiro foi especialmente difícil de se eliminar: era uma graça, cativante com seu pelo e olhos espertos. Mas acabou por ter de ser exilado. Haveria mais ratos?

Concentração! Dezesseis minutos e uma platéia respeitosa. Esqueceu-se se havia enfeites e colorações no palco e se a trupe estava por perto. Aliás, apresentava-se sozinho ou em bando? Deveria ser sozinho. Um poeta viúvo. Pairava na rua um sossego incoerente e com a chegada do vigésimo minuto, resolveu entregar-se a qualquer coisa que lhe surgira nos últimos dois minutos.

Às três e cinqüenta de uma manhã de quinta-feira os postes da rua Augusta luziram mais um espetáculo. Após as primeiras sílabas rugidas pelo velho mômaro, houve vidro estilhaçado com aguardente e sangue na sarjeta. O crânio fendido deixava as idéias escorrerem e descerem pelo esgoto do meio-fio. Vinte minutos depois, houve aplausos e redenção.

11.10.08

Crise

Alex cresceu. Tem seus 22 anos e meio, e anda bem feliz ultimamente... Nada saiu como previra... mas sim, como sentira. É um bom ouvinte de seus sentimentos e pensamentos. Sabe quando eles entram em contradição e sabe muito bem como lidar com isso. Tudo é muito bom. Tudo é muito claro. Claro, até ele conhecer María...
Até esse ponto, Alex tinha tudo muito bem definido... muito bem planejado... mesmo entre o caos que era o seus planos, ele se sentia confortavel com esse caos... Um caos organizado. Como se o sistema maior de sua própria estrutura mental era um que continha e definia um sistema menor e que nesse sistema menor havia um caos instalado que destruiria esse sistema menor... transformando-o em outro sistema menor... porém dentro dos limites do sistema maior. Logo, tudo era bom. Tudo era gostoso. Tudo era uma felicidade estranha e alegre...
Alex conheceu María.
Em um acesso de uma estranha lucidez, dessas que as pessoas acham que é a verdadeira lucidez, Alex pensou que María se sentia atraida por ele por causa de sua felicidade, sua alegria, seu mundo unico de planos estranhos e sistemas caoticamente perfeitos. Ótimo, - disse Alex - assim me mantenho como sou e junto a isso terei uma companheira maravilhosa... Que vida perfeita.
Pouco a pouco, como uma chuva que se aproxima solta suas gotas, Alex foi se desmoronando. Como havia ele de prever Ela? Seu caos se desfez, logo seu sistema menor se desfez, e logo seu sistema maior também. Tudo - sua alegria, felicidade, segurança, saudade, até sua tristeza e os momentos poucos alegres - tinham ido embora. Tudo era novo. Tudo era inseguro. Tudo desconhecido. Alex conheceu o Outro.
Na sua estranha lucidez ele pensou que já conhecia o Eu, e agora estava conhecendo o Outro... mas ele teve um acesso feliz de verdadeira lucidez e pensou que, afinal, ele não sabia nada de nada. De ele mesmo, do outro, dos dois, tres ou tudo... Nada.
Alex se sentiu como uma criança... nova, desconhecedora de tudo e pronto a desbravar o mundo... Mas Alex agora crescido sentiu um grande medo desse desconhecido. Da vida. Do Amor, talvez? Sim... Porque esse medo estranho? Ele também não sabia. Infernos. O desconhecido. A confusão. O medo. A vida! Tudo de novo! Mas agora com a consciencia de tudo! Que horrivel é a Vida! Cheia de dor e sofrimento. Medo, raiva e opressão... Horrivel? Porque é horrivel? É horrivel que uma menina seja estuprada aos 20 anos por um desconhecido com AIDS? Sim... É horrivel uma menina não ter com quem perder a virgindade porque o seu próprio pai a tirou quando tinha 5 anos? Sim... É horrivel um homem matar os seus tres filhos por uma loucura qualquer? Sim. A vida é feita disso? É. Ela é feita de mais coisas também... Boas e ruins. A conclusão era que a vida é a vida. Assim como Alex é Alex. Por culpa Dela é que ele se viu assim... Um homem. Como a vida, acima do bem e do mal. Horrivel ou maravilhosa? Natural, diria Alex. Cada um com a sua vida... não? Mas Ela também o fez ver o além... Sentir essa coisa indescritivel chamada Além. Além do que? Do conhecimento, é claro. Dos sentimentos, também? Porque não? O além está além. Depois. Depois do pensamento. Depois do sentimento. Depois de tudo. E o que vêm depois de tudo? A morte, óbvio... e como experimentar isso? Alex pensou que era algo a ver com o tempo... que já estamos conectados com tudo... ou seja, com a vida e com a morte. Nossa vida e nossa morte. Alex viu a sua morte... E sempre a sentiu... Sente ela agora mais do que nunca. E sente a morte dela também... E isso é o que mais lhe amedronta. Ele não quer ver ela ir. Nunca. Mas sentia que isso era exatamente o que ele precisava fazer... aceitar a morte. A dele e a dela. Que horrível é tudo isso... O filho de Deus na cruz... que horrível! Jesus! Me ensine algo!
María o ensinou algo... A morrer e a deixá-la morrer também. Porque ela é Ela. É a portadora da vida. Do próximo. Do futuro, e eventualmente, do presente.
Graças a Ela, os dois morreram.

Riam. Riam os cínicos: Eles se casaram.

Renasceram e Vivem... como Um.

31.8.08

O Fotógrafo

O fotógrafo jovem se apaixonou pela imagem dos anciãos e só teve olhos para a velhice em sua vida artística. Enxergava a perfeição nas dobras das rugas irregulares, duras, enraizadas, tempestuosas e ao mesmo tempo estáticas, que se cortinavam na superfície da pele de senhores idosos e madames de idade.

Amou e apreciou isso com toda a intensidade, até que a velhice bateu em sua porta.

Quando envelheceu, tornou-se narcisista.

16.8.08

namorada virtual

Quarenta anos atrás tive uma namorada virtual.
Nos escreviamos por internet.
Nos viamos por camera..
Nos falavamos por microfone...
O quanto que eu queria sentir o cheiro dela...
Só Deus sabe.

Eu adorava conversar com ela
Ela era inteligente e charmosa com suas palavras
Me deixava sem graça
Me deixava no ponto certo
Um ponto que só ela conhecia.

Nunca mais alguém me fez sentir coisas como ela fez.

Um dia ela parou de entrar na internet
Parou de mandar e-mails
Parou de entrar no msn.
Nunca mais vi aquele quadrado com a cara dela sorrindo pra mim.
Nunca mais escutei a voz dela pelas caixinhas do meu computador...
Nunca mais.

Fiquei bravo. Angustiado.
Magoado.
Mas passou...
Nunca mais namorei ou conheci alguém pela internet.

Quarenta anos depois resolvi procurar ela...
e quarenta anos atrás, ela morreu.

22.6.08

O Saco do Mago

O saco tinha se esvaziado, mas ele tateava incansavelmente. A platéia entendendo como parte do espetáculo, mas ele desesperado no meio dos focos cegantes de luz. Atuava com a verdade do desespero. Tão verossímil.

Que faria ele? Haviam esvaziado o saco do pobre mago. Repente? Improviso? Era todo insegurança o coitado, e a platéia comprava o suposto suspense do ato. Nenhuma idéia lhe vinha na cabeça, não conseguia entrever nada. Resolveu jogar na mão do destino e do acaso. O improviso sem a mínima idéia.

Meteu a mão mais o fundo que pôde e de lá tirou esse conto. A platéia não gostou muito não. Mas ele não perdeu audiência. Então tudo bem, ele continua com sua mágica.