22.10.08

O Lapso do Mômaro

Todas as sinaleiras pararam para o maior espetáculo de todos os tempos. O artista, tão talhado, reluzia no centro dos holofotes. Navios voadores injetavam as luzes e, dos automóveis e janelas poluídas, a cidade espectava como platéia.

Era música? Poesia? Agradeceu sem ter idéia do que faria. Ah, tinha aquele ar de circo, isso tinha. Só pra reparar, olhou para os próprios pés e viu dois sapatões vermelhos de palhaço. Sim, uma pista. Tinha um lance de semáforos, flamingos, grandes cortinas, mendigos que se diziam demônios-azuis. Era isso? Uma faísca lhe passou latejando: estava curvado há mais de dez muitos, agradecendo a presença da platéia; mas assim que ficasse ereto teria de apresentar seu espetáculo.

Em sua casa apareceram três ratos há duas noites. O terceiro foi especialmente difícil de se eliminar: era uma graça, cativante com seu pelo e olhos espertos. Mas acabou por ter de ser exilado. Haveria mais ratos?

Concentração! Dezesseis minutos e uma platéia respeitosa. Esqueceu-se se havia enfeites e colorações no palco e se a trupe estava por perto. Aliás, apresentava-se sozinho ou em bando? Deveria ser sozinho. Um poeta viúvo. Pairava na rua um sossego incoerente e com a chegada do vigésimo minuto, resolveu entregar-se a qualquer coisa que lhe surgira nos últimos dois minutos.

Às três e cinqüenta de uma manhã de quinta-feira os postes da rua Augusta luziram mais um espetáculo. Após as primeiras sílabas rugidas pelo velho mômaro, houve vidro estilhaçado com aguardente e sangue na sarjeta. O crânio fendido deixava as idéias escorrerem e descerem pelo esgoto do meio-fio. Vinte minutos depois, houve aplausos e redenção.

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