21.10.07

A Invenção da Imortalidade

Numa tarde ensolarada de manhã chuvosa os deuses resolveram se encontrar pra matar a saudade e beber cerveja até a floresta anoitecer. De longe, o homem solitário viu a orgia dos divinos e seu coração palpitou de felicidade. Correu rápido à festa e lá bebeu a bebida deles e comeu a comida deles. Tudo era ébrio, gargalhada e amor.

Conversava sobre o belo e o mundo quando o deus caçador, que muito lhe estimou, lhe lançou uma tarefa. Havia uma besta criada pela natureza, cujos deuses não tinham o poder de matar. A besta era madraça e preguiçosa, mas devorava brutalmente quem quer que cruzasse seu caminho. Devastava sua criadora e assassinava todos os deuses corajosos.

O homem de pensamento torpe quis saber qual era a recompensa. Em troca, disse o deus caçador, lhe dou a imortalidade.

Bebeu até a lua ir embora com os deuses. Ali mesmo, debruçado sobre uma rocha recostada num carvalho frondoso, dormiu até a tarde seguinte. A solidão e uma cigarra o acordaram. Esfregou os olhos de ressaca e sua barba sorriu o rir satisfeito de sua lembrança. Esticou os ossos e pulou na terra firme pra despertar. Catou sua lança e foi buscar a besta que lhe traria a eternidade.

Na trilha que formava, o homem matou leões pra que lhe sobrassem as zebras. Alimento havia em abundancia e, ao rumar ao seu destino, o homem se fortalecia.

Foi numa manhã de noite bem dormida que o homem acordou por um sísmico e próximo abalo terrestre. Ao pular num átimo e abrir os olhos, sua lança já apontava para o diabo gigantesco. Tinha a altura de várias árvores e sua pele era de rocha. Entre saltos esquivos e movimentos sagazes o homem desviava heroicamente da morte que a tudo devastava. Via raízes e troncos despedaçando-se nos ares e o imenso punho de pedra que quase arrancara sua cabeça.

Logo o homem em fuga percebeu que corria na direção de um precipício. Assim, tomou coragem e parou observando o demônio ensandecido vir em sua direção. Segurou firme sua lança e num movimento anguloso despendeu toda a força de sua alma num lançamento que mirava a fronte da criatura. A lança rasgou o ar e ao acertar em cheio a criatura, despedaçou-se como sua esperança.

O homem se ajoelhou e se encolheu no chão. Espremeu os olhos enquanto sentia os abalos da corrida do monstro lhe tremerem a alma. A morte passou em sombra, tato e som por cima de sua insignificância e caiu, muda e finalmente com um estrondo maravilhoso no fim do precipício.

Seu coração gemia de alívio, e ainda tremendo viu a criatura atordoada pela queda, lá em baixo. Rápido, desceu escalando a montanha e numa coragem insana saltou sobre a corcunda da besta, aproveitando seu estado. Subiu até o pescoço e saltou para a orelha. Apoiou-se e entrou naquela cavidade fedorenta. Logo dali viu a câmara quase oca de seu crânio e uma pequenina massa cerebral em seu centro, suspensa por cabos venosos e nervos. Sem hesitar, pulou naquela massa e, ao sentir o despertar da criatura, rasgou com garras e mordidas ferozes o pequeno cérebro da besta.

Tudo ficou inânime ao redor do homem, e ao sair do crânio de pedra, caiu no chão e descansou por alguns dias.

Numa manhã de garoa o homem acordou, e na frente dele o deus caçador bebia cerveja com alguns outros. O deus sorriu para o homem e lhe ofereceu bebida. Tudo era amor, satisfação e redenção. O homem então lembrou-se da promessa de sua recompensa e o deus da caça, com um sorriso amigo, o chamou para ir com ele até uma gruta que havia ali perto.

O homem palpitava de alegria, agitação e ansiedade. Ao chegarem, o deus caçador colheu uma fruta vermelha e de sua algibeira retirou uma cuia e um toco. Ali mesmo, abaixou-se apoiando a cuia no chão e amassou a fruta com o toco, até virar algo como uma sopa. O homem prestava atenção e vidrava em cada movimento daquele processo.

O deus da caça foi à parede da gruta munido de sua sopa vermelha e desenhou uma figura humana. O que você vê aqui?, perguntou ao homem. O homem custou a entender, mas finalmente compreendeu o que era aquilo. Deu então ao homem a cuia e pediu para que desenhasse um leão em ação, perseguindo uma zebra. Não demorou muito, o homem reproduziu a imitação daquela cena. Pronto, lhe disse o deus caçador, você agora possui, além do meu amor, a imortalidade.

O coração do homem gozava de uma felicidade completa. Tão logo o deus partira, o homem subiu no topo do monte em que a gruta se fendia. De lá de cima, contemplou a floresta do mundo em toda sua extensão. Respirou fundo, abriu os braços, e finalmente saltou de lá de cima para provar sua eternidade.

4 comentários:

Alben disse...

Achei que ficou meio confuso o finalzinho, na parte da maçã e os desenhos da parede. Não consegui identificar as figuras de linguagem (embora algumas teorias insanas tenham me passado pela caxola).
Do mais a construção é muito boa e me lembra (e muito) o Livro de Ouro da Mitologia do Thomas Bulfinche.

Abrazz nêgo.

Lírica disse...

Homens e deuses bebendo cerveja... humanização de mitos ou mistifocação do humano? Dualidade proposital? Um exercício socrático. Lembrou-me de Fedro.
Um diabo rígido, burro e preguiçoso, assassino, mas criado pela própria natureza... como um contraponto dela mesma. De certa forma está aí a personificação do que vc considera mais odioso, né?

Lírica disse...

A solidão despertou o homem. É pra se pensar...
"Sou o rapaz Davi..." Hahaha. Vc meio que encarnou o Davi na cena em que a lança(e não a funda) atinge a fronte do diabo. Mas expressa o desejo de confrontação pela razão! Um filósofo!
A besta, de tão besta, calculou mal o ataque e se ferrou, ams o homem torpe não se deu por satisfeito?! Penetrar a mente do mal e rasgar-lhe as conexões... Só os jovens têm tanta fome e coragem__ prepotência. Mas vale como expressão de desejo.
O homem torpe pode até destruir o mal, mas segundo vc, ele é um mal maior ainda a si mesmo! Deseja e teme a morte continuamente... e não entendeu a imortalidade pela arte e pela história!

Lírica disse...

Devo parabenizá-lo pelo conto. Bastante rico de figuras de liguagem, personagens densos e convincentes e enredo bem elaborado. Um tanto irreverente aos olhos judaico-cristãos... talvez "confuso" aos de menos afinidade com os "arquétipos" bíblicos, mas ainda assim, correto em sua essência. Porque vinho, cerveja... manjares ou isca de peixe... o importante é a comunhão e os elementos de enlevo que unem homens e suas referências divinas. Mesmo que esses deuses sejam apenas representações de seus pais e/ou mestres, com os queis vc demonstra ousada intimidade, igualdade e acesso, o que pra mim significa que vc já é e se reconhece adulto.