21.8.07

Marta e o Cão

Marta trabalhava nas terras verdes do rei Augusto, numa pequena vila chamada Abacate. A vila era pequena e sossegada, e Marta era uma moça simples, que trabalhava muito duro para seu senhor, Lorde Espíndola. Este homem era um influente comerciante nas redondezas, e talvez o mais próspero entre os chefes-marceneiros do rei Augusto.

O trabalho de Marta era envernizar e pintar as peças já trabalhadas pelos artesãos e marceneiros. Era um trabalho de muita responsabilidade, já que era a ultima etapa do processo de produção das peças. O negócio de Lorde Espíndola consistia em produzir carros reais e militares de toda espécie; desde carroças, carros-de-boi e de arado até charretes, cabriolés, carros-de-luxo e caleças.

Nos fins de semana, Marta reunia muitas crianças da vila no galpão onde trabalhava durante a semana. Lá ela pegava todas as sobras de tinta e ensinava as crianças a fazer pinturas em madeira e em couro. Ela gostava muito das crianças e cada uma delas a amava. Marta considerava-se feliz.

Era uma quarta-feira de sol causticante e Marta pintava um magnífico carro luxuoso que provavelmente se destinaria à chegada de algum convidado do rei. Já havia pintado a primeira camada de tinta em todo o carro, e se sentou num pequeno balde de madeira virado ao ar livre, fora do galpão da oficina, para se refrescar e tomar um pouco de ar. O suor escorria por seu corpo inteiro, das sobrancelhas delicadas e loiras até as canelas. Em seu avental de couro exibiam-se borrões de pinceladas azuis e escarlates. Ouvia-se somente o canto das cigarras, e vez em quando um galopar distante na estrada. Ali só havia ela e a brisa fresca que acariciava seu cabelo, o campo e as árvores.

Algo tocou seus dedos. Num susto, Marta puxou a mão até o peito e quase caiu do banco quando sentiu aquele toque úmido. Surgira do nada um grande cão negro ao seu lado, que arfava de cabeça baixa e tristes olhos amarelos. O animal olhava para os lados, despreocupado e tranqüilo, e ao perceber o receio da moça, tornou a cheirar amigavelmente seu corpo. Marta foi relaxando ao perceber que não era um animal agressivo, e que provavelmente era um cão doméstico, da vizinhança. Levou a mão à cabeça do cachorro e acariciou-o.

O cachorro voltou a arfar e só então marta percebeu que sua língua era de um verde esmeralda vivo. Ao lamber o pulso da moça, o cachorro deixara um rastro da mesma coloração de sua língua, como se um pincel embebido de tinha verde tivesse passado pelo dorso da mão de Marta. Ela arregalou os olhos e a princípio achou que o pobre cachorro tinha engolido uma boa porção de tinta.

"Pobre animal, confundiu uma lata de tinta com um pote de água, não é? Vamos, eu te dou um pouco de água pra que sua língua volte a ficar limpinha e vermelha". Súbito, ao pronunciar a ultima palavra, a língua do enorme cão se fez vermelho vivo. Marta se assustou e examinou a boca do animal. Sua mão se sujou toda da baba do bicho, que era de coloração rubra e viva, e até cheirava tinta. Quase como um reflexo automático, Marta pronunciou "azul", e a língua do animal se fez da cor do céu.

Marta estava atônita com sua descoberta. Em sua frente havia um cão pintor; ou ao menos um cão que produzia tinta ao invés de saliva. Rapidamente chamou-o para a oficina. O animal se pôs à frente do carro como se examinasse o mesmo. Após alguns momentos, começou a rodear o veículo, e a farejá-lo, numa análise mais íntima. Marta apenas observava estupefata. O cão estendeu a língua pra fora e ganiu, olhando para a moça, a qual disse "escarlate, tom médio". Incontinenti, a língua do cão se fez tom médio de escarlate, o mesmo tom que ela estava usando nas rodas daquele carro. O cão começou a lamber cuidadosamente os detalhes nos aros. A moça não reprimia suas impressões: experimentava uma espécie de felicidade assustadora, como quando se descobre algo incrivelmente inimaginável.

Marta passou a chamá-lo Izaque, como uma lembrança de seu falecido avô, que fora um grande pintor. Todos os dias, Marta trazia consigo o cão pintor para trabalhar com ela, o que o animal fazia com prazer. Marta passava longas horas depois do trabalho passeando e brincando com seu novo companheiro. Assim, meses se transcorreram naquele ano. Marta e Izaque pintaram muitos carros, e Lorde Espíndola, ao perceber a evolução na eficiência e na rapidez da produção, mostrou seu reconhecimento diminuindo as horas de trabalho da moça. Agora Marta podia dedicar um tempo livre fazendo o que mais gostava. E passava longas horas de seus dias a pintar quadros.

Certo dia chuvoso, o rei Augusto resolveu ir até a vila de Abacate acompanhado de alguns militares, inspetores e alguns cobradores de impostos. Foi primeiramente até a casa de Lorde Espíndola cobrar tributos, e depois, acompanhado do mesmo, foi verificar o funcionamento de sua produção. Após visitar vários galpões e oficinas, chegou finalmente ao ultimo; um que era um pouco menor e mais simples, no qual uma bela moça chamada Marta trabalhava.

A chuva fez com que Marta e Izaque não notassem a chegada de sua senhoria e de vossa alteza. Lorde, rei e séquito pararam e olharam pasmos para o cão pintor. Permaneceram mudos e imóveis durante longos minutos, observando aquela cena surreal, mágica, provinda de feitiçaria. Não criam no que viam, e o rei várias vezes esfregou os olhos, desacreditando o que via. Após um tempo considerável, Izaque percebeu a presença deles e latiu. Incontinenti, as autoridades de recompuseram e Lorde Espíndola se aproximou, ainda estupefato, e questionou a moça.

Marta viu que não havia saída. Sabia do seu destino agora. Mesmo assim, explicou tudo, nos mínimos detalhes, ao Lorde e ao rei, numa tentativa de apelar-lhes à razão. Mas sabia também que a lei e o estado são impassíveis. O rei Augusto apenas observava enquanto o patrão da garota a questionava e repreendia. A moça omitira por muito tempo este artefato místico, um ser inexplicavelmente demoníaco, essa besta que poderia ter sido conjurada apenas por uma bruxa. Augusto rezou e fez o sinal da cruz, indicando o fim de sua resolução e a prece pela luz divina sobre a lei. A bruxa seria executada pelo pecado imensurável que cometera.

Marta morreu enforcada em praça pública na vila de Abacate, uma terra imatura, num dia ainda mais chuvoso que aquele. Não houve um cidadão que não chorasse pelo fim pobre moça. O cão-pintor fora examinado dias depois, e constou-se que tinha língua saudável e normal, e que salivava saliva, e não tinta. Marta vive apenas como uma frágil lembrança naquela vila, e por quanto tempo será lembrada como moça pura e inocente, não se sabe. Talvez, em tempos que ainda estão por vir, Marta possa ser lembrada como uma terrível e bruxa. Mas isso faz parte das coisas que não se sabe, e das que não se há de saber. A final, as fábulas vivem à mercê dos bardos e do tempo.